De tempos em tempos aparecem nos jornais casos relacionados às ações afirmativas. Neste último mês de julho, a Universidade de São Paulo (USP) expulsou um aluno pela primeira vez em um caso de fraude às cotas [1], no mesmo mês, a UnB tomou a mesma decisão ao expulsar outros 15 estudantes pelo mesmo motivo. [2]
Só que desta vez a polêmica foi um pouco diferente, recaindo sobre a varejista Magazine Luiza que anunciou a abertura de um programa Trainee com vagas exclusivas para negros. [3]
A decisão repercutiu e voltou a fomentar a discussão a respeito da adoção das “cotas”. Em comentários pela internet e corredores da vida é possível encontrar todas as opiniões possíveis sobre o tema, que variam desde a concordância até o total desprezo. A comoção foi tanta que o programa chegou a ser denunciado 11 vezes ao Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo e teve uma ação civil pública protocolada por um defensor público federal.[4]
É a primeira vez que uma grande empresa — ao menos a primeira vez que a decisão toma repercussão geral — toma a decisão de criar um programa exclusivo para negros e isso nos traz a necessidade de explicar, mais uma vez, o que são as cotas, ou melhor, o que são as ações afirmativas e quais são as bases jurídicas e sociais por trás delas.
O que são as ações afirmativas?
Para debater o caso precisamos entender o que são as cotas e as ações afirmativas. Cotidianamente é comum que utilizemos equivocadamente o termo “cotas” para se referir a qualquer ação afirmativa. Na realidade, a “cota” é apenas uma espécie das ações afirmativas. As ações afirmativas são ações, políticas, decisões ou qualquer outro ato que tenha como objetivo acabar ou mitigar a exclusão social, cultural e econômica de indivíduos pertencentes a grupos que sofrem qualquer discriminação.
Exemplificando: cotas são, por exemplo, a reserva de vagas — em universidades, colégios, etc — para candidatos de determinado grupo social historicamente excluído. Enquanto as ações afirmativas tem um sentido mais amplo, definido pelo Estatuto da Igualdade Racial, que define no art. 1°, inciso VI – ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotadas pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades. [5]
Qual é a acusação?
Em ação cível pública proposta na Justiça do Trabalho de Brasília, o defensor público acusa que o programa “viola o ordenamento jurídico, em especial a Carta Constitucional, que veda expressamente a discriminação pela cor como critério para admissão de empregados.”
Nos argumentos do defensor, a principal violação cometida pela empresa seria contra o Art. 7°, XXX da Constituição Federal, em que, dentre outras coisas, proíbe critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, defendendo que o programa de Trainee determinava preferência de determinada raça ou etnia em detrimento de outras e suscitando que, embora o racismo reverso não seja um instituto jurídico no ordenamento brasileiro, o racismo certamente “abrange qualquer conduta de discriminação em razão de raça, cor da pele e origem étnica em detrimento de qualquer pessoa.”
O que diz a Magazine Luiza?
Segundo Frederico Trajano, CEO do Magazine Luiza, a decisão foi tomada após um diagnóstico interno da empresa, no qual foi constatado uma diferença considerável entre o número de funcionários e o de lideranças negras dentro da empresa. Principalmente quando observado dentro das edições do programa de Trainee. [6]
Esse diagnóstico, segundo Frederico Trajano, acendeu um alerta dentro da empresa para que viesse a decidir pelo programa de Trainee. Também que, embora soubesse da repercussão, tinha ciência de sua legalidade e benefícios.
A solução do caso
É inegável que não faltem leis que trabalhem com tema, são inegáveis também os consideráveis avanços provocados pelos mesmos.
Como foi bem apontado pelo Jovino Bento Junior, na sua ação pública, a própria Constituição brasileira veda a discriminação do trabalhador por motivo de raça, cor ou etnia. Também na Constituição estão presentes os princípios da isonomia — Igualdade — e da dignidade da pessoa humana que garantem o tratamento igualitário e digno da pessoa humana.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”
Sendo o caso, o programa promovido pela Magazine Luiza entra em choque com essas defesas legais, certo? Afinal, ela estipula claramente os critérios fenotípicos para contratação, sendo uma forma de discriminar, não?
Bom, de fato o critério fenotípico está presente, todavia, o programa não agride de maneira alguma os princípios e defesas Constitucionais ou qualquer outra lei. Explico.
É claro que todas as ações propostas e denúncias feitas são bem intencionadas, pois intrinsecamente querem lutar contra o racismo e preconceito, mas nesta luta acabam esquecendo de detalhes importantes para compor o quadro geral, pois acabam consideram que a igualdade está na formalidade, ou seja, igualdade formal, perante a lei, que não traduz na igualdade material do cotidiano.
Um primeiro ponto importante a ser destacado é que esse tipo de processo não restringe o acesso às vagas e às oportunidades de emprego ofertadas pela empresa em favor de “uns” e em detrimento de outros. Isto é, não impede que qualquer outro grupo social participe de programas seletivos ou até mesmo de Trainees.
O que este programa faz, na verdade, é exatamente o contrário, é a tentativa de acelerar e fortalecer a diversidade dentro da empresa, em um programa que irá trabalhar apenas com negros, para fomentar e incrementar a liderança negra dentro da empresa. O que de forma alguma significa que a empresa passará a contratar apenas negros.
Se a própria constituição veda o tratamento discriminatório e estabelece princípios para alcançarmos a igualdade de tratamento e oportunidades, então reconhecer que dentro da própria empresa existe uma desigualdade na distribuição dos cargos de liderança e oportunidades e lutar contra isso ativamente é justamente trabalhar em favor do texto legal e favorecer a igualdade entre os trabalhadores.
Outro ponto importante é o Estatuto da Igualdade Racial — lei Nº 12.288, de 20 de julho de 2010 — que sustenta em sua integralidade, mas em especial no seu Art. 2° o dever do Estado e da sociedade em garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação, dentre outras coisas, nas atividades empresariais.
Além da responsabilidade, a lei define que essa garantia deve ser promovida justamente, por exemplo, através da adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa, conforme estabelecido em seu Art. 4°, inciso II. Reconhecendo mais uma vez as deficiências e indicando caminhos para superá-las.
Tendo tudo isso em vista, fica claro que os programa desenvolvido pela Magazine Luiza, assim como muitos outros, não têm qualquer impedimento legal. Sendo, na verdade, até mesmo incentivada por um Estatuto específico.
Concluindo, podemos dizer que: a Constituição prevê em seus primeiros artigos os princípios e direitos que regem a vida em sociedade dentro do estado brasileiro. Dentre eles o da isonomia, igualdade e a defesa contra a discriminação, em especial contra o trabalhador, seja pelo motivo que for. Esses direitos são válidos para todos e são — via de regra — indisponíveis. Todavia, não são absolutos e precisam ser analisados caso a caso, sabendo-se que existe uma diferença entre a igualdade formal e igualdade material. Diferença essa que é legalmente combatida através dos próprios direitos e princípios constitucionais quanto em legislação própria.
Por fim, vejo que, mesmo com as mais nobres das intenções, as denúncias e ações propostas por conta de programas como esse acabam mais por retardar o efeito exemplar das empresas que os adotam perante às outras do que ter efeitos positivos para a sociedade.
E você? Gostou da atitude da empresa e espera que o exemplo seja levado ou acredita que ainda assim a empresa deveria atingir seus objetivos por outros métodos? Comente aqui embaixo e compartilhe para que mais pessoas possam opinar também.
[1] USP expulsa aluno pela 1ª vez por fraude no sistema de cotas raciais
[2] UnB expulsa estudantes que fraudaram sistema de cotas
[3] Trainee Magalu 2021 abre vagas exclusivas para negros – Seja Trainee
[4] Defensor público federal ajuíza ação contra Trainee para negros do Magazine Luiza
[5] L12288 – Estatuto da Igualdade Racial
[6] ‘É inaceitável termos só 16% de líderes negros’, diz Frederico Trajano