2020 foi um ano de acontecimentos excepcionais. Especificamente, nos trouxe uma adversidade que não vivenciávamos desde a Gripe Espanhola. Foi o ano que desafiou cada um de nós a nos reinventarmos e viver em um mundo à distância, e também foi o ano que cutucou as feridas abertas da nossa estrutura social, principalmente as do Estado.
Foi neste ano que as autoridades do mundo todo tiveram que correr para entender e lidar com um vírus o qual mal conhecemos. Trouxe uma crise sanitária e humanitária, que evidenciou de vez a nossa incapacidade coletiva de colaboração e organização. Mas foi justamente em terras tupiniquins que esses problemas ficaram ainda mais claros. Afinal, depois de quase um ano de pandemia, quem é que deve coordenar e gestar a máquina pública para sairmos dessa?
A garantia Constitucional
Em primazia, a Constituição de 88 nos diz que saúde é um direito social de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, em seu Artigo 196°.
Esse direito também está expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual o Brasil é signatário. A Carta expressa que todos os seres humanos têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a saúde e bem‑estar de si mesmo e da sua família, cuidados médicos e direito à segurança em caso de doença.
Isso é importante pois mostra o nível de importância que o Estado brasileiro deu à Saúde ao longo do último século, integrando esse direito essencial em nossa constituição, como um dever do Estado.
A Competência
Esse dever é dividido em competências distribuídas entre as Unidades da Federação. Simplificando, podemos dizer que o Estado brasileiro está dividido em 3 níveis fundamentais: os níveis Federal (União), Estadual e Municipal.
A responsabilidade sobre a Saúde pública no Brasil é de todos os entes federativos, em uma competência comum, conforme encontramos no Art. 23 da Constituição. União, Estados e Municípios precisam tomar medidas para assegurá-la. Contudo, cada um tem uma responsabilidade diferente e em escalas diferentes, escalas essas que se baseiam no princípio da predominância do interesse.
Esse princípio, explicado também por doutrinadores*¹, está exemplificado no Art. 198 da Constituição, dizendo que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo”.
Melhor dizendo, seguimos o princípio que a União irá tratar das matérias e questões que tenham predominância do interesse geral, de todo o país, os Estados abordarão as matérias e questões regionais e os Municípios as de interesse local. Quanto mais específica de um local, mais regionalizada é a competência para tratá-la.
Colocando em linhas gerais, fica assim:
- Governo Federal: planeja, cria normas, avalia e fiscaliza o SUS. É o principal financiador, responde por 50% do investimento nessa área.
- Governo Estadual: responsável pela política estadual de saúde e apoio às ações da política nacional de saúde, coordena as ações do SUS no estado e coordena laboratórios e hemocentros. Define hospitais de referência e gerencia locais de atendimento complexo na região. Precisa aplicar, no mínimo, 12% de sua receita na área da saúde, além dos recursos repassados pela União.
- Governo Municipal: é o principal responsável pela atenção básica à saúde, prestando serviços em sua localidade com a parceria do Estado e do Governo Federal. Administra os serviços de saúde da cidade. Aplica no mínimo 15% de sua receita na área de saúde, além dos repasses do estado e da União.
O caso em concreto.
Em abril deste ano o PDT levou ao Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. A ação de número 6.341 foi proposta com base na Lei Nº 13.979 de 2020, que diz sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
Inclusive, já tratamos sobre ela no artigo da vacinação obrigatória, que você pode conferir aqui.
O partido questionava alguns pontos da lei, mas especificamente o § 9º do art. 3°, em que, segundo o partido, haveria concentração dos poderes na União nas matérias referentes à pandemia.
O Acórdão (a decisão feita em conjunto pelos ministros), analisou que a Medida Provisória (agora Lei), publicada em janeiro, não feria as competências de cada ente. Na verdade, a medida provisória não contraria a Constituição porque não impede a tomada de providências normativas e administrativas por Estados, Distrito Federal e Municípios. Mas, apesar de não acolher o pedido de nulidade dos dispositivos da Medida Provisória, o ministro acolheu o pedido para que fique explícita a competência concorrente dos entes federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios) para tomar essas medidas.
Ou seja, todos continuam com poderes plenos para tomar as medidas sanitárias necessárias para o combate à Covid-19 ou outro qualquer ato.
O LockDown
Sendo assim, de quem é a responsabilidade de determinar medidas mais severas, como o confinamento ou LockDown?
O LockDown não é algo previsto em lei, não há um artigo que descreve especificamente algo como ele*². Então para saber quem deve determiná-lo, precisamos entendê-lo.
No dicionário inglês Oxford, podemos encontrar a seguinte descrição: “estado de isolamento ou restrição de acesso instituído como uma medida de segurança” e, pensando exatamente nesse sentido, ele é determinado em um ambiente, um local, uma área de risco. Uma área que em maior ou menor tamanho, é sempre específica e pouco abrangente.
Imaginemos, por exemplo, duas cidades: a cidade A localizada em uma rodovia estadual e que devido sua localização recebe visitantes a negócios vindos de outras cidades. E a cidade B, vizinha de A mas que não está no mesmo eixo em que passa a rodovia.
Agora pense que a cidade A, com um fluxo maior de pessoas que passam e interagem com a cidade, começa a apresentar casos de Covid entre comerciantes, lojistas, etc. Mas a cidade B, vizinha de A, não. Querendo evitar um aumento dos casos na cidade A, qual seria a autoridade pública mais próxima para tomar medidas que enfrentam o problema?
Nessa situação precisamos lembrar do princípio da predominância do interesse. É difícil de imaginar que, por exemplo, o Presidente do Brasil devesse tomar alguma medida diretamente sobre a cidade, contando que o país tem mais de 5 mil municípios. Também é difícil imaginar que o governador do estado deva se preocupar com um único município em específico. De quebra, só nos resta o prefeito da cidade, que é o representante do poder executivo imediato nessa questão.
O interesse, nesse caso, é estritamente local. Imagine o Governador, por exemplo, instituindo um LockDown para todo o Estado em virtude de cidade A? Outras cidades que possivelmente nem tenham tido contato com a doença ainda seriam afetadas sem motivo aparente.
A coordenação.
Isso, no entanto, não significa que o Prefeito agirá sozinho. Como foi dito anteriormente, todos os entes têm responsabilidade, em nível e grau diferente a depender de sua posição. Justamente porque o impacto que uma doença especialmente contagiosa, por exemplo o Covid, tem impactos diferentes em diferentes cidades, ao mesmo tempo que impacta toda uma região ou até mesmo um país inteiro.
Por isso, a União, por exemplo, deverá editar normas e orientações gerais e genéricas*³ que façam sentido para todo o âmbito nacional e que ao mesmo tempo possam ser aplicadas em todos os mais de cinco mil municípios do país. Enquanto aos Estados concernem as normas e planos que sejam aplicáveis no nível regional, que integrem os diversos municípios em um plano orientado. Enquanto aos municípios competem sua administração e legislação interna, estando de acordo com os planos nacionais e mais especificamente com os estaduais do qual o município faz parte.
A descoordenação
No entanto, essa pode ser uma tarefa árdua. Ainda mais quando há capital político em jogo. E é nessa situação que o Brasil se encontra.
Em maio deste ano o presidente da república reuniu-se com empresários e com o Supremo Tribunal Federal, pressionando para que as medidas de isolamento fossem afrouxadas para que a economia não fosse impactada. Também, em cidades como São Luís do Maranhão, em que teve Lockdown determinado por ordem judicial a pedido do Ministério Público.
Sem deixar de lembrar as trocas de Ministros da Saúde devido aos constantes desentendimentos entre o presidente e ministros sobre a coordenação da pasta. Precisamos mencionar a responsabilidade especial da união sobre as situações de calamidade pública.
A Calamidade Pública
A Constituição também deixa o nível federal responsável por “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”, conforme seu Art. 21. Ou seja, a União deve planejar e coordenar a atuação de todos os Estados e municípios.
É a União, principalmente através do presidente da república, que é responsável pela coordenação da situação de calamidade pública (o decreto legislativo que reconhece o estado de calamidade pública no Brasil em decorrência da epidemia do coronavírus foi aprovado em março). E ela deve atuar para garantir a sintonia e equilíbrio dos entes federativos.
A responsabilidade de todos é fundamental e a situação grave em que o país se encontra torna a necessidade de coordenação ainda mais forte. Contudo, as disputas políticas embaçaram o combate ao Covid, chegando ao ponto do negacionismo científico.
Conclusão
As responsabilidades do Estado são grandes. Ao menos é o que nossa Carta Constitucional determina. E com tamanha responsabilidade e influência direta na vida dos cidadãos é necessário que ela seja exercida com as melhores diretrizes, sob coordenações conjuntas e cooperativas e um genuíno exercício do espírito federativo do Estado Brasileiro. Caso contrário, não seremos capazes de enfrentar as adversidades, como uma doença, que possam surgir e sempre sairemos atrás na corrida de recuperação.
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Adendos:
*¹ (juristas que escrevem e publicam sobre a ciência do direito)
*² Temos, no Brasil, o Estado de Sítio e Estado de Defesa, mas são institutos diferentes e não cabem nessas situações.
*³ Neste caso, o genérico não é vago, mas aquela norma que é ampla de abrangência nacional.
Fontes:
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
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