A palavra da vez é Igualdade. Por ela já mataram e morreram, talvez só não mais do que pela própria Liberdade. Não à toa é a segunda palavra do mote francês “Liberté, Egalité, Fraternité”. Possuí primos e primas: isonomia, equidade e justiça são alguns de seus parentes próximos que juntos são os pilares construtores de toda teoria moderna da Justiça.
Mas assim como é aclamada é também mal compreendida, seu sentido é deturpado à conveniência do freguês. Frequentemente da razão ao seu oposto, a desigualdade, e por consequência à injustiça.
É sobre a sua “criação” e evolução da ideia de igualdade que iremos nos debruçar hoje.
O que é igualdade?
O significado e interpretação do que é igualdade é um processo que se desenrola ao longo da história e que ainda está em desenvolvimento. Portanto dificilmente será definido em uma única concepção. Para a matemática, por exemplo, é a simples expressão da relação entre duas quantidades iguais, dois mais dois é igual a quatro e ponto final. Já segundo o dicionário Michaelis, igualdade é a qualidade daquilo que é igual ou que não apresenta diferenças, uma ideia de proporção, nivelamento.
Mas e aos olhos do Direito? Igualdade pode ser traduzida na simples equiparação entre entes? A igualdade, para começo de conversa, nem sempre foi a razão em torno da qual se sustentava a lei. mesmo na Antiguidade Clássica, com a Democracia Ateniense, não se reconhecia a igualdade entre todos. Era o próprio Estado quem promovia a desigualdade ao hierarquizar a sociedade.
Ainda que a igualdade tida àquela época não fosse a mesma que temos hoje, foi em Aristóteles que surgiram os fundamentos dos novos conceitos de igualdade. Surgem, com base em suas ideias, os conceitos da igualde na lei e igualdade real.
Isonomia Formal: igualdade na lei
É somente com a igualdade na lei, ou igualdade jurídica, que podemos falar em um conceito de igualdade relativamente mais amplo.
O seu reconhecimento tem suas bases na filosofia clássica que deu origem ao movimento Iluminista que tempo depois nos levou às duas grandes revoluções liberais: a Americana em 1776 e Francesa 1789 até 1799.
Foram ambas as revoluções que postularam pela primeira vez uma ordem social na qual se reconhecesse a igualdade como um de seus princípios regentes. Mas foi a Liberdade que foi verdadeiramente fundamental para as classes revoltosas, sendo esta última colocada em primeiro plano e a igualdade em segundo.
A igualdade se tornou uma questão de formalidade. fixou-se como a obrigação negativa do Estado o dever reconhecer o indivíduo como plenos em suas capacidades e por isso não intervir com títulos e poderes. Deixá-los livres e assim iguais perante as leis.
Ocorre que esta a igualdade reconhecida no trato das leis não se traduzia em equidade. As diferentes capacidades econômicas e acesso aos bens de consumo ainda eram causa e resultado de uma sociedade notoriamente desigual causada pelas forças de mercado.
A sociedade então voltou-se para outro dilema, como tornar o Estado, que antes era o promotor da desigualdade, e agora passou a ser indiferente a ela, em algo que luta contra a própria entropia da sociedade? **
Isonomia Material: Igualdade no mundo real
Como resposta à pergunta surge o pensamento Marxista, que resgata a ideação aristotélica de igualdade, aprofundando ainda mais o sentido posto na lei ao tratamento de seus cidadãos, sentido que havia sido subestimado pelas revoluções liberais do século XIX.
A Revolução Russa e as constituições do México, de 1917, e da República de Weimar, em 1919 na Alemanha foram os movimentos que sedimentaram no papel pela primeira vez a ideia de equidade.
Isso pois o resultado desse movimento foi a compreensão da Isonomia Material, ou a igualdade propriamente traduzida na realidade, e não apenas no texto da lei.
A igualdade que antes era a obrigação negativa do Estado em não gerar distorções concedendo privilégios, status e autoridade, tornou-se a obrigação positiva de correção das desigualdade causadas pelas formas de organizações sociais vigentes derivadas do puro Liberalismo.
Aqui, sedimenta-se o reconhecimento de que não só o Estado deve se abster de criar desigualdades, que não apenas deve ser colocar fora do caminho das liberdades individuais, mas que também deve agir no sentido de reverter as crescentes desigualdades causadas pela própria natureza humana.
No entanto o sentido aqui não é de tornar todos em indivíduos sem qualquer individualidade, mas sim arrefecer desigualdades tão grandes capazes de romper com o próprio tecido social.
Traduzido na famosa frase atribuída ao pensamento de Aristóteles: “Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.”
(Na verdade, o pensamento aristotélico original correspondia a frase “Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”. Quem adicionou o último trecho “na medida de sua desigualdade” foi Rui Barbosa.)
Critérios Objetivos para a discriminação?
Pois então, se estamos falando em tratar os iguais igualmente, e e os desiguais desigualmente na medida de sua desigualdade, quais estão os critérios que nos permitem definir tais tratamentos? Seria essa uma forma legal de gerar discriminações arbitrárias?
Evidentemente que se não colocarmos em termos objetivos como tais diferenciações podem acontecer elas aconteceram de forma arbitrária.
Então, como determinar se um tratamento propositadamente desigual fere o princípio da isonomia? Podemos buscar a resposta nos ensinamentos de Celso Antonio Bandeira de Melo. O autor nos dá três critérios para utilizarmos como parâmetro no estabelecimento de tais tratamentos. São eles:
a) o elemento tomado como fator de desigualação;
b) a correlação lógica abstrata existente entre o fator diferencial escolhido e a desigualdade de tratamento dispensada pela lei;
c) a consonância desta correlação lógica com os valores prestigiados no sistema constitucional.
Para que não ficar apenas na abstração, vamos trabalhar um exemplo concreto reaproveitando a charge dos torcedores acima.
Em tempos do Estado Liberal, em que existia a postulação da igualdade formal, havia um caixote disponível por lei para cada torcedor que acompanhasse o jogo. Ao determinar tal regra, a lei garantia que todos fossem igualmente beneficiados, sendo iguais entre si no trato da lei.
Mas nem todos os torcedores são iguais, alguns são mais altos, outros mais baixos, de modo que a distribuição igualitária dos caixotes não os colocava em posições igualitárias. Por tanto, a lei precisava ser alterada para que compensasse essas diferenças e todos fossem colocados em igual patamar.
Mas se a lei precisa diferenciá-los para determinar quem ganha mais caixotes e quem ganha menos caixotes, qual critério usar? Se observarmos o primeiro parâmetro, veremos que o elemento tomado como fator de desigualação é a diferença de altura entre os torcedores.
Assim, para que o primeiro critério seja compatível com a diferenciação estabelecida em lei, ela também deverá trata sobre a altura. Não faria sentido, por exemplo, que a lei determinasse que os torcedores do time X ganhassem mais caixotes do que os torcedores do time Y.
Mas faz sentido que os torcedores de menor estatura ganhem caixotes de forma inversamente proporcional aos de maior estatura. Quanto mais alto, menos caixotes ganha, quando mais baixo, mais caixotes ganha.
Para todos os efeitos, os torcedores continuam sendo iguais em dignidade, mas no que concerne às suas diferenças de altura para que possam assistir ao jogo, a lei promove concessões desiguais.
Dessa forma certificamos os dois primeiros critérios, mas para que o princípio da isonomia não seja ferido precisaremos também do terceiro, a consonância desta correlação lógica com os valores prestigiados no sistema constitucional.
Igualdade no Brasil
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, chamada de “Constituição Cidadã”, reconheceu-se o princípio da igualdade perante a lei. Presente no Art. 5°, diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Mas não para por aí. O art. 1°, inciso III define que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana, preceito que deve orientar a interpretação de todo o ordenamento jurídico. E define logo mais no art. 3° que são objetivos da república são construir uma sociedade livre, justa e solidária, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Um exemplo prático na legislação brasileira é a gratuidade da justiça. Ao entrar com um processo, devem ser recolhidas algumas custas processuais. Pelo princípio da isonomia, todos deveriam pagar as custas, mas, em aplicação da isonomia material, a justiça reconhece que nem todos tem condições financeiras de pagar tais custas, o que pode afastar essas pessoas da tutela jurisdicional do Estado, deixando-as desemparadas. Por isso, a depender do nível de renda, é concedida a gratuidade da justiça para quem não possa pagar por tais valores sem comprometer seu sustento.
A constituição, portanto, instituiu um regime jurídico que se atém a igualdade de direitos, conforme os ditames da justiça social.
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Bibliografia e referências
ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Celso. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. [S. l.]: Malheiros, 2008. 48 p
BUCHALLA MARTINEZ, Anna Luiza. A evolução do princípio da igualdade e sua aplicação sob a ótica material na Constituição Federal. Jus, [S. l.], p. 1-2, 5 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20924/a-evolucao-do-principio-da-igualdade-e-sua-aplicacao-sob-a-otica-material-na-constituicao-federal. Acesso em: 3 set. 2021.
CORRÊA DOS ANJOS, Roberto. POLÍTICAS AFIRMATIVAS: IGUALDADE FORMAL E MATERIAL. Ciência Atual, Rio de janeiro, v. 16, ed. 1, 2020.
IGUALDADE. [S. l.], 1 jan. 2021. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=igualdade. Acesso em: 3 set. 2021.
TRINDADE DA SILVA, NÍCOLAS. Da igualdade formal a igualdade material. Ambito Jurídico, [s. l.], ed. 107, 1 dez. 2012. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/da-igualdade-formal-a-igualdade-material/. Acesso em: 3 set. 2021.
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