A blindagem da personalidade jurídica pari passu com a Lei da Liberdade Econômica

    • Personalidade Jurídica e Liberdade

Econômica

A consolidação do código civil1 de 2002, feita por Miguel Reale, trouxe uma proposta sobre um tema bastante complexo, em seu artigo 50, no qual retrata a desconsideração da personalidade jurídica. Veja aqui ipsis litteris:

“Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

Aqui, existe uma latência em relação à adequação do caso concreto à teoria da desconsideração da personalidade jurídica e seus requisitos, como a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade. Isso representa um grande problema quando afeta diretamente modalidades de empresas como LTDA, S/A e EIRELI.

De fato, a preocupação surge quando as decisões a favor da desconsideração da personalidade jurídica são tomadas por analogia com base em artigos de outros códigos. Por exemplo, a Lei 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990 (Código de Defesa do Consumidor) em seu artigo 28 prevê a descaracterização da personalidade jurídica quando há lesão ao consumidor final e aos credores, sendo de certa forma uma punição para a modalidade empresarial LTDA, pelo fato de não se levar em consideração os requisitos do artigo 50 CC/02, nem o princípio da autonomia empresarial.

A desconsideração da Personalidade Jurídica

Sendo declarada desfeita a sociedade empresarial, ou seja, a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, cabe aos sócios responderem de forma ilimitada.

A desconsideração da personalidade jurídica também possui uma forma que ainda hoje é bastante complexa em seu entendimento de acordo com os artigos 133 e 135 do Código Tributário Nacional. Estes artigos do CTN caracterizam a inadimplência da pessoa jurídica como infração grave, sendo os sócios, em cargo de direção, de gerência ou de representação de pessoa jurídica de Direito Privado, responsabilizados ilimitadamente pelos os atos intencionais ou não intencionais que vierem a lesar a arrecadação de tributos.

O entendimento que havia no judiciário, há alguns anos, resultava bastante controverso no momento de provar se realmente houve culpa de todos os sócios que integralizaram o capital da empresa, com suas quotas parte, mesmo nos casos em que a má gestão tivesse sido feita pelo sócio com maior porcentagem de lucro. Isso claramente era ignorado por quem decidia, resultando, sem o devido “olhar” para aplicabilidade e os requisitos da punição, em afronta ao rol que o próprio artigo da lei trazia de forma taxativa.

Insegurança Jurídica

Com o advento da CLT e sua lei especial, tratando de questões bastante sensíveis, houve uma mudança relevante no que diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica. A Consolidação das Leis do Trabalho em seu artigo 855-A e a aplicação do Código de Processo Civil em seus artigos 133 a 137, por analogia, têm enfraquecido o elo empresarial, uma vez que os requisitos para a desconstrução da personalidade jurídica penalizam quem assume riscos trabalhistas já que na falta de pagamento a funcionários e credores pode vir a ser decretada a falência da empresa.

Esse processo, historicamente, acarretava insegurança jurídica pelo fato de a sociedade limitada, em casos de falência ou má gestão, perder sua autonomia sem o devido processo legal – princípio constitucional basilar pare efetivação do contraditório e da ampla defesa – sendo pautado pelo jurista Daniel Moreira2 em seu artigo sobre o tema. Veja:

“O entendimento jurisprudencial, ao contrário, tem feito da desconsideração da personalidade jurídica a regra, ensejando a responsabilidade ilimitada dos sócios que respondem diretamente, com seus bens pessoais, independentemente da ocorrência de abuso ou fraude na gestão e uso da pessoa jurídica. “(sic)

O problema hermenêutico vem a ser acrescido aos “decisum” sobre a desconsideração da personalidade jurídica, na prática, limitando o desenvolvimento de novos empreendimentos e, portanto, o desenvolvimento econômico.

O judiciário observava questões e transformações tupiniquins como fonte de Direito e adotava costumes praeter legem, na ausência de analogia ou por falta de hermenêutica, por exemplo, nos embates Funcionários vs Empresário. A hipossuficiência e a função social eram sempre as bases para proferir decisum, sem uma análise mais criteriosa, gerando, quase automaticamente, a despersonalização da empresa.

Com a reforma trabalhista (Lei. 13.467/17) tivemos uma “igualdade” jurídica entre empresário e empregado, gerando uma estabilidade nas questões de desconsideração da personalidade jurídica de empresas na seara trabalhista. Isso dá um resguardo para o empreendedor e estabilidade econômica para as empresas, pois o custo era, às vezes, insuportável, nas lides que se arrastavam e sempre pendiam ao trabalhador, independentemente de com quem estava a razão.

A insegurança jurídica que se deu, justamente, pela falta de análise mais aprofundada nas decisões sobre empresas limitadas, geraram quase o fim desta modalidade empresarial, ocasionando uma série de recursos aos tribunais superiores pelo fato de juízes de primeiro grau e, consecutivamente, pelo entendimento do regimento do tribunal, terem uma visão cristalizada em relação à eficácia dos princípios norteadores do código civil feitos por Miguel Reale.

Carlos Maximiliano3 em sua obra “Hermenêutica e aplicação do Direito” fala sobre a jurisprudência sentimental, protegendo os fracos e oprimidos dos poderosos, presidido pelo bom juiz francês Magnaud no século XVII. Levando essa transição atemporal sobre ideias humanitárias, o que vemos é o modus operandi do judiciário, quando o magistrado se deixa guiar apenas e tão somente pelo sentimento.

A Liberdade Econômica

A MP.881, de 2019, sobre a liberdade econômica, veio com o propósito de utilizar, pelo caminho do liberalismo econômico, a defesa das empresas e a desburocratização para o empreendedor e para empresários de grandes firmas.

Em suma, isso alterou o artigo 50 do código civil de 2002, alteração esta que se observa em seus parágrafos, nos quais o juiz que analisar o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve verificar se realmente o ato foi feito dolosamente, de modo a levar vantagem econômica, ou se realmente a confusão patrimonial foi instaurada por apenas um dos sócios.

Conforme o tempo de eficácia da MP.881 foi passando, o projeto foi tramitando em seu rito ordinário, tornando-se a Lei. 13.874/19. Com isso, a lei altera as regras para a desconsideração da personalidade jurídica, definindo o conceito de desvio de finalidade e confusão patrimonial, bem como ressaltando que a mera existência de grupo econômico não ensejará a aplicação automática do instituto da despersonalização da pessoa jurídica.

A seguir, o entendimento do jurista Lucas Tavella Michelan4 sobre a blindagem que a lei. 13.874/19 veio trazer, principalmente, à sociedade limitada:

“O que se verifica, desse modo, é que as novas regras sobre a desconsideração da personalidade jurídica, já aplicadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, corroboram a alteração empreendida no CPC, no sentido de fornecer maior segurança jurídica às partes envolvidas.

Um olhar de cautela

Diante dessa tendência, será necessário, por outro lado, que os Juízes tenham bastante atenção e cuidado para não permitir que maus pagadores se escondam atrás dessas novas alterações, para nunca terem seus patrimônios atingidos, mesmo que utilizem de forma abusiva a personalidade jurídica das empresas, o que pode levar a um indesejado esvaziamento desse importante instituto. “ (sic)

O professor Bruno Meyerhof Salama5 aponta um item importante a ser alterado, o mais rápido possível. No trecho abaixo, exemplifica, com humor, um problema com que as empresas ainda hoje são, literalmente, surpreendidas. Veja:

“O Novo Código de Processo Civil criou o chamado “incidente de desconsideração de personalidade jurídica”. A Reforma trabalhista tratou do redirecionamento dos débitos trabalhistas. E, recentemente, a festejada Lei da Liberdade Econômica reforçou a limitação de responsabilidade na esfera das obrigações cíveis e comerciais.”

Tudo muito bonito, mas ficou faltando o principal: a esfera tributária.

A esfera tributária

É preciso criar condições para o florescimento da atividade empresarial no país. Para isso, é preciso, antes tarde do que nunca, acabar com o redirecionamento tributário. Ou então, que o Judiciário perceba o erro que não vem de hoje e o faça ele próprio (sic).

A blindagem da personalidade jurídica realmente foi feita concomitante à eficácia da lei de liberdade econômica, mas como todo o restante do ordenamento jurídico, e sendo um sistema que interliga todos os ramos do Direito, é necessária uma visão macro do poder legislativo e um consenso de que para frear esse alto índice de desemprego no país, com cerca de 10 milhões de desempregados, a eficácia desta blindagem deverá ser mais ampla, incluindo a questão tributária.

Sem uma reforma tributária, tanto dos estados quanto na União, qualquer lei que venha, em tese, blindar as empresas e fomentar um sistema com menos amarras estatais, terá sua força mitigada pela serôdia arrecadação tributária, pela liquidez da evolução da sociedade e dos problemas contemporâneos do Direito. Portanto, devem ser tomadas medidas urgentes para alcançarmos uma reforma tributária justa para todos.

 

BIBLIOGRAFIAS

[1] ALMEIDA, do Vale Fernando, Guilherme, Luiz, Código Civil Comentado, Editora, Manole, 2a Edição, 2017.

[2] MOREIRA, Daniel http://www.portaltributario.com.br/artigos/desconsideracao-personalidade-juridica.htm

[3] MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Pág. 76, Editora, Forense, edição 21a, 2017.

[4] TAVELLA, Michelan Lucas https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI311860,71043-A+desconsideracao+da+personalidade+juridica+e+a+lei+da+liberdade

[5] SALAMA, Mayerhof, Bruno. https://mpmapacontabilidade.com.br/noticias/tecnicas/2019/11/21/a-pegadinha-da-responsabilizacao-de-socios-por-dividas-tributarias-da-empresa.html

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Rafael Souza

Bacharel em Direito pela Faculdade Das Américas (FAM). Membro colaborador da Comissão dos Acadêmicos de Direito da 116a Subseção Jabaquara- Saúde da OAB/SP. Membro Assistente da Comissāo de Direito Constitucional e Filosofia e Argumentaçāo da 116a Subseção Jabaquara- Saúde da OAB/SP. Membro assistente do IGOAI (International Group of Artificial Intelligence) Colunista do Blog Justalks.

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