“Tá me acusando com toda razão, matei minha vontade em outra boca e não vou te pedir perdão. Quem nunca esteve em meu lugar pode até apedrejar, mas se você parar para me ouvir vai ver que nossa história não é bem assim.” Esses sãos os versos iniciais da música “Legítima defesa”, Interpretada por Marcos & Belutti, dupla sertaneja que marca presença nas rádios e playlists.
Além do ritmo marcante que gruda na cabeça, a música esconde em seus versos melódicos uma prática cada vez mais recorrente no meio artístico, principalmente no sertanejo: abordagem do cotidiano, do mundano, o impacto do urbano e a mudança na cultura do povo.
A música conta a história do eu lírico (o personagem que narra a história) que agiu em “legítima defesa” contra o abandono amoroso que sofria, “matando” a vontade em “outra boca”.
Afinal, essa história toda faz algum sentido? Claro, a música é construída com toda a liberdade poética, não há qualquer necessidade de ser “juridicamente exato”, muito menos de “matar” de fato um sentimento (personificado, nesse caso).
Mas, aproveitando da linguagem figurada, quais são as situações “penais” na música?
*Se você nunca ouviu a música, você pode conferir ela aqui. A letra está na descrição do vídeo e também no final dessa página. Mesmo que você não curta Sertanejo vale a pena.
A Acusação
A música começa com uma acusação, o eu lírico matou a “vontade”. Curiosamente, ele mesmo não nega o fato, mas há um detalhe: segundo ele, embora tenha matado a “vontade”, ele só fez isso em legítima defesa, não premeditou, e por isso merece perdão.
Nesse caso, a acusação é de homicídio. Sem maiores detalhes, podemos assumir que a acusação trata-se de um Homicídio simples, em que de fato houve a intenção do agente, correspondente ao Artigo 121° do Código Penal (CP).
Mas, como diz na música, teria cometido o crime em legítima defesa, em virtude do desamor, falta de atenção e frieza e sua correspondente.
A legítima defesa é uma excludente de ilicitude. Isso significa que quando você age em legítima defesa não há crime, mesmo que na prática do ato tenha cometido algo contrário à lei, como por exemplo matar alguém. Isso está descrito no Art. 23°, inciso II do CP.
Mas não é qualquer coisa que se encaixa no conceito de legítima defesa. A letra fala em “desamor”, falta de atenção, será que isso pode ser legítima defesa?
O Art. 25 do CP nos ajuda com isso, ele diz que podemos entender como legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Todo mundo tem direito de ser amado, não é? Mas não acho que não ser amado é algum tipo de agressão, por mais que doa.
Assim o nosso eu lírico fica em maus lençóis. Tendo confessado o crime quando diz “Tá me acusando com toda razão, matei minha vontade em outra boca”, ele ainda não se mostra nem um pouco arrependido, dizendo que não vai pedir desculpas pelo que fez.
O pedido da Defesa
Ele termina sua defesa alegando que merecia ser perdoado, pois o crime não foi premeditado. Aqui nós temos duas situações diferentes: o perdão judicial e a premeditação de crimes.
Um crime premeditado é quando o autor do crime planeja com antecedência a realização do crime. Quando, por exemplo, alguém saí de casa já armado com a intenção de encontrar um desafeto e matá-lo. Coisa diferente da situação que em uma eventual briga de rua, um dos brigões acaba matando outro.
O crime premeditado precisa que se tenha um intervalo de tempo grande entre a decisão e o crime em si, tempo que seja suficiente para o autor repensar seus planos e desistir do crime, além da frieza do planejamento “estratégico” de como realizar o ato.
A simples premeditação do crime não é causa para agravar ou aumentar a pena do agente, não há essa previsão no código. Mas pode ser utilizada como circunstância legal para a análise do juiz, que a partir disso decide qual a pena do condenado. De qualquer forma, para felicidade do nosso eu lírico, esse não parece ser seu caso.
O perdão judicial é diferente. Para começo de conversa, não vale para qualquer crime, na verdade, é uma situação bem restrita. O Art. 121 (o mesmo do homicídio), diz no seu §5° a respeito do “perdão judicial”, ao dizer: na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.
Ou seja, só vale para crimes culposos em que o resultado atinge de forma pessoal o responsável agente. Um exemplo famoso desse tipo de situação é quando um parente, na condução de um veículo, causa um acidente que além da morte de outro desconhecido, causa a morte de um ente muito próximo. Só o arrependimento e dor pela perda da vida do parente próximo é punição suficiente.
Nesse caso, há como aplicar perdão para o crime cometido na música? Não parece ser o caso analisando a letra.
Em suma temos a seguinte situação: o eu lírico cometeu um homicídio simples, em virtude da oportunidade e situação em que se encontrava. Acusado, defende-se dizendo ter realizado a prática criminosa em legítima defesa, coisa que não se sustenta, pois não havia qualquer injusta agressão sendo cometida contra este ou outra pessoa a qual o cometimento desse crime pudesse salvar. Sua alegação de crime não premeditado não trás qualquer consequência para a situação, sendo uma situação incontroversa. Por fim, pede que seja concedido Perdão judicial, coisa que não pode acontecer pois não possuí os requisitos para que seja aplicado.
Parece que a situação não caminha nada bem, não é? Mas talvez ainda tenha uma solução. A música menciona de forma genérica a legítima defesa. Mas e se estivermos falando da legítima defesa putativa?
Uma esperança?
Semelhante a legítima defesa, a putativa diferencia-se apenas em uma perspectiva: embora o autor (aquele que se defende) não esteja em perigo de vida, ou injusta agressão, ele pensa que está e age como se estivesse.
Nesse caso, pode ser que nosso camarada (ou nossa colega), de fato pensasse que estivesse com sua vida em risco, ou que de fato estivesse sofrendo alguma agressão que justificasse o homicídio da coitada da “vontade”. Não há uma forma objetiva e precisa de medir o grau dessa convicção, é necessário analisar o caso muito a fundo para compreender as intenções e realmente perceber se o eu lírico realmente acreditava estar em perigo.
Ainda assim, mesmo que consiga fazer o argumento valer, poderia estar sujeito aos excessos cometidos. Talvez seja possível convencer sobre a legítima defesa putativa, mas será que é possível convencer que ela de fato justificasse um homicídio? Não seria um excesso de reação?
O já citado Art. 23 (em que fala da legítima defesa) também aborda essa situação. Em seu Parágrafo único, diz: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.” Traduzindo: você pode e deve se defender, mas sendo com intenção ou sem, você deve utilizar os meios necessários e sem extrapolar seu direito, sob pena de responder pelo excesso, por aquilo que fez além da defesa.
Talvez, de fato, o nosso querido eu lírico se sentisse ameaçado, e diante da ameaça defendeu-se. Mas o resultado que confessadamente pretendeu alcançar, matando a “vontade” talvez fosse uma reação exagerada demais para a agressão que acreditava sofrer.
Eai? Você acha que ele deve ser condenado ou inocentado da morte da “vontade”? Deixa nos comentários aqui em baixo!
Letra:
Tá me acusando com toda razão
Matei minha vontade em outra boca
E não vou te pedir perdão
Quem nunca esteve em meu lugar
Pode até apedrejar
Mas se você parar pra me ouvir
Vai ver que nossa história não é bem assim
Eu vou protocolar minha defesa
Vou virar a mesa em meu favor
Eu tenho muitas provas do seu desamor
Se eu matei a solidão
Foi por falta de atenção
Crime não premeditado
Mereço ser perdoado
Se eu matei minha carência
Foi por falta de assistência
Fui tratado com frieza
Foi legítima defesa
Tá me acusando com toda razão
Matei minha vontade em outra boca
E não vou te pedir perdão
Quem nunca esteve em meu lugar
Pode até me apedrejar
Mas se você parar pra me ouvir
Vai ver que nossa história não é bem assim
Eu vou protocolar minha defesa
Vou virar a mesa em meu favor
Eu tenho muitas provas do seu desamor
Se eu matei a solidão
Foi por falta de atenção
Crime não premeditado
Mereço ser perdoado
Se eu matei minha carência
Foi por falta de assistência
Fui tratado com frieza
Foi legítima defesa