Era quarta-feira de noite, por volta das 23h quando Durval Teófilo Filho voltava para casa. A poucos metros de distância, abre sua mochila e começa a procurar suas chaves quando, de repente, é baleado.
O disparo foi efetuado por um vizinho, Aurélio de Almeida e ex-sargento da marinha, que estava dentro de um veículo que aguardava a abertura do portão de casa, e que atirou acreditando estar se defendendo de um assaltante que se aproximava. Logo após o primeiro disparo, Durval cai ao chão, sem oferecer qualquer tipo de resistência, sendo alvejado mais duas vezes.
Percebendo que tratava-se de seu vizinho e, portanto, nenhuma ameaça, Aurélio presta socorro e o leva ao hospital mas sem sucesso. Durval Teófilo morre em mais um caso isolado.
Uma análise
Aproveitando o riquíssimo fio escrito pelo professor Davi Tangerino, no Twitter, podemos pensar algumas questões criminalísticas a respeito da morte de Durval.
A pergunta que se procura responder aqui é se houve crime, ou seja, seja a situação é típica, antijurídica e culpável. Para que façamos essa análise precisamos identificar de que crime estamos falando. Neste caso, homicídio, previsto no art. 121 do código penal.
No caso, Aurélio atirou em seu vizinho crendo estar em legítima defesa, que é uma causa excludente de ilicitude. Ou seja, é ilegal/ilícito matar alguém, mas se você faz isso defendendo a si mesmo ou outra pessoa, o fato deixa de ser crime e portanto deixa de ser penalmente punível.
Ocorre que Aurélio não estava diante de um assalto, muito menos ameaçado de qualquer forma por Durval. Percebe-se daí uma diferença entre o que o autor dos disparos entende e a realidade da situação. Chamamos situações como essa de “erro” e está prevista no art. 20 do código penal, que descreve que o “erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.”
Seria o caso, portanto, de considerarmos aquilo que no juridiquês chamamos de legítima defesa putativa: exatamente quando alguém age acreditando estar em legítima defesa, mesmo que não esteja.
O excesso
O professor pondera que se havia algum mal injusto ao qual faria jus a legítima defesa, esse teria cessado após o primeiro disparo, quando a vítima já estava no chão. Assim, os disparos subsequentes inauguram uma nova relação entre autor e vítima, de forma que toda a discussão de legítima defesa perde importância.
Isso porque a legítima defesa deve ser exercida dentro dos limites dos meios moderados para repelir injusta agressão. Caído e baleado, Durval já não representaria qualquer perigo, tornando os demais disparos desnecessários para conter a situação que se imaginava passar.
A culpabilidade e desistência
Com isso nós chegamos à culpabilidade do agente e, para isso, fazemos a seguinte pergunta: poderíamos exigir do agente uma conduta diversa da tomada? Se não havia outra coisa o que fazer senão atirar para matar, então não há culpabilidade do fato e portanto não há punição. Mas se a resposta for sim, então há crime.
O professor ainda nos ajuda e aponta uma outra questão igualmente importante: o agente buscou prestar socorro após ter percebido o erro, e isso nos traz mais uma complicante que é desistência voluntária.
Como o socorro não foi eficaz em evitar a morte da vítima, podemos falar apenas na desistência voluntária, que faria aplicar ao caso somente os crimes praticados até o momento, neste caso, lesão corporal.
O que realmente importa: a questão racial
A questão, portanto, parece solucionada, o processo penal tomará seu curso e o responsável será penalizado na medida de suas ações e responsabilidades, certo? Não. Ouso dizer que ainda paira uma dúvida no ar. Podemos, afinal de contas, atirar primeiro e perguntar depois em uma pretensão de “auto defesa liminar”? Podemos agir de maneira inescrupulosa atirando três vezes em quem nós acreditamos, por nossos próprios motivos, ser um risco?
Além de não serem questões simples, ainda há o verdadeiro complicador: a questão racial. Nenhuma destas perguntas surge em razão de uma questão fática como essa em prejuízo de pessoas brancas. “Isoladamente”, é claro, são sempre pretos e pardos as vítimas dessas infortunas confusões e enganos.
Em uma busca rápida pelas manchetes de jornal poderemos encontrar diversos casos semelhantes: em 2018 Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, morador da Favela Chapéu Mangueira, foi baleado três vezes após ter seu guarda-chuva confundido com um fuzil e o “canguru” confundido com um colete aprova de balas. No ano seguinte, João Victor Dias Braga foi morto após ter a furadeira que segurava confundida com uma arma. Em outro caso icônico, em junho de 2021 um jovem que aguardava pela namorada em frente ao shopping Leblon foi acusado de ter furtado uma bicicleta elétrica que montava. Só após a tentativa de abrirem o cadeado foi possível provar que a bicicleta era de fato sua.
Durval em números
Para não soar anedótico, aqui vão alguns números levantados pelo Atlas da Violência, por meio de uma parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), ligado ao governo do Espírito Santo e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia.
O levantamento, que considera o ano de 2019, aponta que 77% das vítimas de homicídio no Brasil são negras. Mostra que a chance de uma pessoa negra ser morta é 2,6x maior do que uma pessoa não negra. Em números absolutos, para brancos e amarelos, a taxa de homicídios é de 11,2 a cada 100 mil habitantes, enquanto que para negros é de 29.
Considerando que, segundo o IBGE, em torno de 54% da população brasileira é negra, a diferença entre as taxas não se justifica por meios racionais. Esses dados são contundentes em apontar uma coisa: o preconceito racial estrutural.
Uma Guerra Fria Civil
Devemos apenas aceitar a situação e permitir que esses números existam dessa forma ou devemos procurar maneira reais e eficazes de lidar com a violência urbana? Isso é, devemos aceitar que estamos à mercê da criminalidade e portanto usar dos meios que julgarmos necessários para garantir nossa autodefesa?
Claro, a violência instalada no Brasil afeta a todos. Por exemplo, somente com os números fornecidos pela própria Secretaria de Segurança Pública (SP) podemos perceber que houve um aumento de aproximadamente 25% nos roubos contabilizados no mês de agosto de 2021 em comparação à 2020, os furtos, uma alta de 44% no mesmo período, passando de 28.917 para 41.678.
Mas o tiro disparado por Aurélio não reflete apenas uma situação esporádica e exclusiva. Ela é manifestação de um medo coletivo temperado à moda dos preconceitos estruturais da nossa sociedade. Certamente que o ex-sargento não tinha intenção alguma de discriminar seu vizinho, subjugando suas ações devido sua cor de pele.
Ainda que doa admitir, a situação dificilmente teria tomado lugar caso um homem branco passasse no lugar de Durval.
Com medo de ser a vítima, Aurélio atirou e assim garantiu a sua sobrevivência. E assim voltamos a questão, será que poderíamos exigir de Aurélio uma outra atitude, que não fosse atirar para matar? Se a resposta é não, isso significaria que temos a liberdade de atirar em quem quisermos se acreditarmos, seja pelo motivo que for, que essa pessoa nos representa ameaça? Afinal, se não podemos esperar outra coisa de um ex-sargento da marinha, pessoa que confiamos ter ao menos algum treinamento, exigiremos conduta diversa de quem? Será mesmo que queremos persistir em uma sociedade que nos faça olhar com desconfiança até mesmo contra nossos vizinhos, e que temamos pelas nossas vidas em momentos em que simplesmente não há motivo?
Será que podemos continuar vivendo em uma sociedade em que temos medo da aniquilação mútua a qualquer instante, e que certamente não queremos ser os últimos a apertar o botão do juízo final?
Essas são perguntas para as quais já temos resposta. O que ainda não resolvemos é como fazer isso mudar.
Referências e Bibliografia
TV GLOBO. Sargento da Marinha que matou vizinho em São Gonçalo é indiciado por homicídio culposo. G1 , [S. l.], p. 1, 3 fev. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/02/03/sargento-da-marinha-que-matou-vizinho-em-sao-goncalo-e-indiciado-por-homicidio-culposo.ghtml. Acesso em: 4 fev. 2022.
Fio do Professor Davi Tangerino: https://twitter.com/DTangerinoPenal/status/1489580478311116800
CAROLINA MOURA. PM confunde guarda-chuva com fuzil e mata garçom no Rio, afirmam testemunhas. El país, [S. l.], p. 1, 19 set. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html. Acesso em: 4 fev. 2022.
EXTRA. Jovem pode ter sido morto ao ter furadeira confundida com arma, diz família. Extra, [S. l.], p. 1, 3 abr. 2019. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/jovem-pode-ter-sido-morto-ao-ter-furadeira-confundida-com-arma-diz-familia-23571855.html. Acesso em: 4 fev. 2022.
Atlas da Violência pública: https://forumseguranca.org.br/atlas-da-violencia/
PRUDENTE , Eunice. Dados do IBGE mostram que 54% da população brasileira é negra. Jornal da USP, [S. l.], p. 1, 31 jul. 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra/. Acesso em: 4 fev. 2022.
Homicídios voltam a subir em agosto em SP; furtos e roubos também crescem no estado e na capital. G1 SP, [S. l.], p. 1, 24 set. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/09/24/homicidios-voltam-a-subir-em-agosto-em-sp-furtos-e-roubos-tambem-crescem-no-estado-e-na-capital.ghtml. Acesso em: 4 fev. 2022.
Leia também: https://www.justalks.com.br/principios-fundamentais-da-republica/