Tem circulado nas redes um vídeo em que um jovem andava por um shopping, na cidade de Caruaru/Pernambuco, posando de uma braçadeira com o símbolo da suástica nazista. O vídeo mostra o jovem sendo abordado por um segurança do local e um outro homem que hostilizava o garoto pela sua atitude. Naturalmente o vídeo gerou repercussão e muita comoção.
E o acontecimento não é exatamente novidade, afinal não é a primeira vez que algo assim acontece. Na buscando entender esses episódios alguns levantamentos tem apontado que essas manifestações tem se tornado cada vez mais frequentes. Uma pesquisa realizada pela agência Fiquem Sabendo mostrou que nos anos de 2019 e 2020 houveram mais inquéritos para investigar apologia ao nazismo do que nos 15 anos anteriores, um aumento de 288%.
Como assim apologia ao nazismo?
Podo soar como novidade, mas apologia ao nazismo é crime no Brasil. A previsão está no §1° do art. 20, da Lei 7.716/89 (“Lei antirracismo”), e diz que é crime fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo, com pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa.
A lei, publicada em 5 de janeiro de 1989, tipifica a apologia ao nazismo e outras formas de discriminação desde então. Ocorre que embora traga alguma repercussão para quem o pratique, tornar algo crime ou aumentar sua pena não faz com que a conduta seja de fato reprimida e evitada.
Uma evidência disso é que mesmo sendo crime a apologia ao nazismo tem crescido em número de casos, como mostrou o levantamento da agência. Além desse recente caso do jovem em Caruaru, ano passado uma jovem de 20 anos foi indiciada por veicular e divulgar emblemas e símbolos nazistas, como a suástica. Alguns anos atrás, em 2014, outro caso repercutiu nos jornais, um professor universitário em Santa Catarina havia decorado o fundo de sua piscina com a suástica nazista. Posteriormente, o caso foi arquivado por não ser uma forma direta de veiculação ou “propaganda” do símbolo.
Mas ser nazista é crime? O Ius Absurdum
Não. O crime é fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. A lei penal não é voltada para punir ideias, mas sim comportamentos. Embora a constituição brasileira postule diversos princípios, entre eles o da igualdade e da não discriminação, o simples fato de identificar-se como nazista não incrimina alguém, por mais socialmente reprovável que seja.
A liberdade de pensamento é, assim como a liberdade de expressão, um direito fundamental. Contudo, a liberdade de expressão enfrenta limites que a liberdade de pensamento não enfrenta. O pensamento está protegido pelo que se convencionou chamar de direito à perversão, o Ius absurdum. É o direito de, dentro dos pensamentos, elaborar ideias de qualquer natureza, sejam elas grotescas ou afáveis. É o Direito de conjecturar desde a beneficência mais caridosa até a mais cruel criminalidade.
Iter Criminis
O Ius absurdum abarca, de fato, todos os tipos de ideias. Ideias que por vezes antecedem crimes e, por isso, também são consideradas dentro da criminologia no estudo do “caminho do crime”, em juridiquês, o iter criminis. Esse estudo reparte em partes/etapas a consumação dos crimes. Entre as vertentes, a majoritária no estudo penal brasileiro sem dúvida é a das quatro fases: a cogitação, a preparação, a execução e a consumação.
Dessas fases, a única que não pode ser passível de punição é a cogitação, pois cogitar, pensar ou simplesmente idealizar é incapaz de produzir efeitos por si só, não é capaz de ferir o bem jurídico protegido (que pode ser a vida, a integridade física, a administração pública, etc). Um pensamento, por exemplo, racista, que nunca se manifesta, permanece em segredo, e se está em segredo nunca produziu dano a ninguém.
No entanto, ideias exteriorizadas não comungam da mesma proteção que o campo dos pensamentos proporciona. A liberdade de expressão é o meio que utilizamos para dar vida à liberdade de pensamento. Expressar sem pensar não existe, e pensar sem se expressar é insignificante. Enquanto o pensar é livre,manifestar-se traz responsabilidades. Quando usamos a liberdade de expressão, damos um passo no iter criminis, saímos da cogitação e pulamos diretamente para a execução e consumação.
Crime de Racismo e injúria racial?
Assim funcionam os Crime de Racismo e Injúria Racial. Ambos são crimes que não requererem resultados materiais, apenas formais, consumados no ato da ação (não precisam de uma manifestação física, como os crimes de dano, de homicídio ou sequestro, por exemplo). Por isso, quando analisamos este tipo de crime só temos as etapas do cogitar e consumar, pois a consumação é imediata ao ato.
Enquanto o pensamento Nazista, ou neonazista, por si, não são crimes, mas a maneira de enxergar e consequentemente a maneira como se trata o próximo pode ser uma maneira de exteriorizar esse pensamento. E pensamentos/intenções traduzidos em ações são passíveis de punição.
Ficou clara a intenção do legislador de associar minimamente as condutas de racismo à apologia ao Nazismo, tanto o é que os crimes não só estão previstos na mesma lei, mas no mesmo artigo, sendo o crime de Racismos previsto no caput e o de apologia no seu §1°. É posto já na constituição brasileira (art. 5°, inciso XLII) que o racismo é crime inafiançável e imprescritível, o que demonstra a preocupação do legislador com a conduta criminalizada.
“Estou no meu direito”
Ainda enquanto era abordado o jovem no shopping de Caruaru diz “estou no meu direito”. A frase é dita em um contexto muito claro e a gesticulação do jovem não deixa dúvidas de que ele se referia ao direito de passear pelo shopping ostentando a braçadeira.
Mas afinal de contas, por que estar em local público com uma suástica é um crime? Bem, discutir esses crimes nos leva de volta a um dilema, já superado, da liberdade de expressão e da tolerância.
O Paradoxo da Tolerância
O paradoxo da tolerância é um dos paradoxos apontados pelo Filosofo Karl Popper. Consiste na ideia de que a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância em si. Nas palavras do autor:
“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.”
É sob este aparente paradoxo e sobre os direitos fundamentais da equidade, que fundamenta-se a criminalização da apologia ao nazismo e do racismo.
A liberdade de expressão, no entanto, também é um direito de todos e de suma importância em um Estado Democrático de Direito. Mas assim como a liberdade de expressão, a tolerância e respeito ao próximo também estão amparados como direitos fundamentais, e quando em confronto com eles, a liberdade de expressão se recolhe e dá espaço ao outro.
Não a toa o mesmo artigo 5° em que elenca a liberdade de expressão também está o reconhecimento da igualdade formal entre os indivíduos e a colocação do racismo como crime inafiançável e imprescritível, reconhecendo o grau de importância dada pela Constituição brasileira a esses valores.
A finalidade
É por meios como esses que a Democracia busca seu pleno funcionamento. Para alguns, Comunismo também deveria ter seu crime de apologia, para outros seria o Capitalismo, mas quem pensa assim esquece a qual é a principal questão por trás da criminalização do racismo e da apologia ao nazismo.
Nazismo não é crime pois é uma ideologia da qual discordamos, pois assim todas as ideologias que não fossem a nossa seriam crimes, mas sim por que vivemos em uma sociedade em que a liberdade, equidade e respeito são valores fundamentais, enquanto que o nazismo prega por natureza o ódio, a segregação de determinados grupos, com um desejo de extermínio. Uma mentalidade que é incompatível com a civilidade democrática, que requer equilíbrio e diálogo entre diferentes pensamentos.
Retomando o filósofo Karl Popper, Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.
Referências e bibliografia
Jovem é expulso de shopping em Caruaru por usar suástica no braço.
Jovem de 20 anos é indiciada no Amapá por apologia ao nazismo nas redes sociais.
Promotoria pede arquivamento de ação após professor alterar suástica no fundo de piscina em SC
Direito à perversão: o risco do ius absurdum
O DIREITO FUNDAMENTAL DA LIBERDADE DE PENSAMENTO