O ano era 1801, a independência havia sido declarada há menos de 30 anos e a Constituição tinha acabado de sair do forno quando, o até então, presidente John Adams, desafiou as instituições em uma tentativa de preservar influência política perante o judiciário americano. Bem-sucedida ou não, o que ele não sabia é que sua articulação transformaria para sempre os caminhos do constitucionalismo no que se transformaria no julgamento do caso Marbury VS Madison.
Um mundo novo.
A Declaração de independência dos EUA tinha acabado de acontecer. Em 04 de julho de 1776 o país proclama-se independente da Coroa Britânica. 5 anos depois as famosas treze colônias ratificam os “Articles of Confederation”, criando uma confederação não tão sustentável que, após 7 anos de debates acalorados, finalmente consolida-se na primeira constituição escrita do mundo moderno, sendo ratificada no ano de 1788.
A Constituição materializava a independência das colônias em uma única nação. Consolidava a separação de poderes, a igualdade, afastava o modelo monárquico e estabelecia a supremacia da lei (rule of the law).
Antecedido por George Washington, Adams era aliado federalista, teve um mandato único e bem turbulento (1798 – 1800). Mas foi ao final de seu governo, quando derrotado por Thomas Jefferson, oposição republicana, que Adams deu sua cartada final: em uma articulação no congresso, o qual detinha maioria, aprovou em janeiro de 1801 uma lei de reorganização do judiciário federal, na tentativa de que pudesse conservar influência política nos órgãos judiciais e, um mês depois, aprovou outra lei que lhe conferia poderes para nomear 42 juízes de paz (em sua maioria, correligionários federalistas).
Em cima da hora.
Assim, Adams impediu que Jefferson pudesse nomear juízes para a Suprema Corte ao mesmo tempo que criou 16 novos cargos de juiz federal e 42 juízes de paz. Em maior ou menor grau, todos “partidários” federalistas.
Aos 45 do segundo tempo, em 3 de março, um dia antes da posse de Jefferson, os nomes indicados foram confirmados pelo senado. Adams então assinou as investiduras e entregou-as para seu Secretário de Estado John Marshall, que ficou responsável por entregá-las aos nomeados. (Ps: guarde bem o nome de Marshall pois ele terá papel fundamental nessa história)
Marshall tinha a árdua tarefa de entregar os atos antes do fim do governo de Adams, mas, embora não tenham faltado esforços, não conseguiu concluir o intento e alguns nomeados não os receberam.
Quem manda sou eu.
Jefferson é empossado e, não gostando nada da articulação de Adams, impede que seu secretário, James Madison, continue a entrega dos atos de investidura.
Dentre os nomeados que não receberam os atos de investidura, estava William Marbury, que no desejo de receber o ato de investidura para o cargo nomeado, propôs a ação judicial que daria início ao caso.
Marshall, Marbury e Madison.
A ação proposta recaiu no colo de Marshall, o mesmo Ex-Secretário de Estado de Adams, que havia sido nomeado para a Suprema Corte há mais de um mês, mas que só assumiu a cadeira após o fim do mandato de Adams.
Para Marbury, a questão era simples, ele havia sido nomeado e queria receber o ato de investidura. Por isso ajuizou o writ of mandamus, que simplificadamente consiste na ação que objetiva uma decisão que irá ordenar alguém a fazer algo.
Para Madison, a questão era mais simples ainda, o chefe mandou, tá mandado. (Claro que isso é simplificando o caso, já que a defesa em si não traz grande importância para nós neste momento)
Porém, para Marshall, o caso repousava em uma questão mais complexa do que teimosia ou pirraça política.
A lei.
A ação foi proposta com base em uma das primeiras leis aprovadas pelo novo Congresso, o Judiciary Act, de 1789, e isso seria fundamental para a resolução da questão. Isso porque o 13º parágrafo da lei aprovada alterava a competência originária da Suprema Corte, atribuindo-lhe poder — competência — para apreciar e julgar outras ações originárias, como a de Marbury.
A análise do caso.
Marshall acabou por encontrar um caminho a ser percorrido em seu voto. Primeiro, precisava estabelecer se Marbury tinha direito à investidura no cargo. Assim, se tinha o direito, então a próxima análise deveria ser a que deve haver um remédio jurídico para a situação, dividindo-se em saber se o writ of mandamus era o remédio correto e, se novamente positivo, se a Suprema Corte tinha Legitimidade de concedê-lo.
O voto que mudou tudo.
Seguindo esses passos, Marshall concluiu que Marbury tinha direito de investidura com base no ato do Congresso que o autorizou para a nomeação do Juiz de Paz. Assim, para ele, a investidura constituía um “vested legal right” (que em português pode ser traduzido como direito adquirido).
Então, passaria para a próxima análise do caso, definindo qual seria o instituto apropriado para que fosse alcançado esse direito.
A pretensão de Marbury através do writ of mandamus era de que o judiciário ordenasse o Executivo a proceder com a entrega dos atos de investidura. Contudo, ao se deparar com tal pretensão, Marshall questiona-se se ela ao menos seria plausível, já que o judiciário em um Estado onde há separação de poderes, em teoria, não deveria se sobrepor aos atos de outro poder, seja ele o executivo ou legislativo.
Com essa reflexão, então, ponderou: existem apenas duas categorias de atos do executivo que não são passíveis de revisão judicial, sendo elas as que a Constituição ou lei houvessem atribuído à sua exclusiva discricionariedade e os atos de natureza política.
Concluiu que não sendo políticos ou de exclusiva discricionariedade, os atos do Poder Executivo são passíveis de controle jurisdicional no que se refere tanto à sua constitucionalidade quanto à sua legalidade. Dessa forma, conclui que o writ of mandamus utilizado era de fato o remédio apropriado para o caso, pois o ato não seria de discricionariedade nem político.
Analisados os primeiros passos, restava então saber se a Corte tinha a competência para apreciar a questão. E é neste momento que a decisão se torna importante. Lembra do Judiciary Act? A lei mencionada anteriormente que alterava a competência constitucional da Corte? Pois é. É aqui que ela mostra sua importância.
A definição do Precedente.
É importante frisar que, embora tenha sido marcante, a novíssima constituição americana não instituía à Suprema Corte o dever de controle de constitucionalidade das leis. Na verdade, ela era tão somente o órgão superior do judiciário. Essa competência foi suscitada em diversos manifestos e trabalhada diversas vezes, mas é apenas com o presente caso que a questão teve um ponto final.
Pois bem. Tendo isso em mente, chega a hora em que Marshall se depara com a última ponderação, em que deverá analisar se a Suprema Corte tem a competência para apreciar o caso, devido à alteração da mesma que atribuía à Corte a competência para a presente ação, contrariamente ao estabelecido na Constituição.
Analisando a questão, Marshall fica diante de duas possibilidades: ou a Constituição é a lei suprema, incapaz de ser modificada mediante meios ordinários, e assim a lei que lhe contrariar não é lei, ou então a Constituição está no mesmo plano das leis ordinárias, podendo ser modificada quando o legislador assim decidir.
Talvez não seja nem necessário dizer, mas não haveria constitucionalismo se fosse ser o segundo caso. Já que a Constituição não passaria de mais um papel de regras que podem ser alteradas a qualquer tempo e situação.
Dessa forma, Marshall colocou a Constituição como lei fundametal e a lei que a contrariar é nula.
Com essa colocação, Marshall fica cada vez mais próximo de estabelecer a responsabilidade da corte sobre o controle de constitucionalidade. Mas ainda restava um detalhe: se a lei que contrariar a Constituição é nula, o que fazer com ela e o caso concreto?
Não sendo muito diferente do que poderia ser, define-se que a lei que afronta a Constituição não deverá ser aplicada, eliminando-se o conflito entre as normas. Desse modo, consolidou que o Judiciário é o último intérprete da Constituição, consagrando o modelo de controle difuso de constitucionalidade.
A sagacidade Política.
Relembrando o começo de toda a história, Marshall era Secretário de Governo de Adams, adversário político de Jefferson, e tinha interesse no resultado da ação.
Sem dúvida que seus posicionamentos políticos o levaram a decidir de tal forma. Mas embora contestável, não podemos deixar de apreciar a inteligência do feito. Acontece que Marshall, ao decidir de tal forma sobre a situação, não somente consolida um poder que iria exercer ao longo de sua carreira na corte, como também resolve o conflito político imposto por Jefferson.
Isso porque a tese apresentada por Marshall atribuía poderes ao judiciário sobre os poderes legislativo e executivo (revisão dos atos desses poderes), coisa que não agradaria a Jefferson e a oposição republicana. Mas como o caso acabou sendo resolvido em favor de Madison, inclusive sem a obrigação de continuar a entrega das investiduras, nada poderia ser feito por eles.
Assim Madison não teve como descumprir ou desafiar a decisão.
Memorável porém criticável.
Mesmo que Marshall tenha resolvido a questão, não faltavam motivos para que também fosse criticado.
Aos mais atentos talvez tenha soado estranho que o instituto da competência tenha sido analisado somente ao final da situação. De fato, a ordem estabelecida pelo Marshall contrariava a lógica do direito processual e deveria ser um dos primeiros fatores a ser analisado. Inclusive muitos entendem que Marshall assim o fez simplesmente para que pudesse dar um recado aos republicanos.
Também, como já foi mencionado, Marshall deveria declarar-se impedido de julgar a ação, justamente por estar envolvido nos fatos que a antecederam tanto quanto interessado no resultado da sentença.
E, como se não bastasse, também haviam diversos outros argumentos e ponderações práticas que poderiam ter sido levantadas em seu voto, como por exemplo o argumento para indeferir o pedido, ponderando que o direito ao cargo só se adquiriria com a entrega efetiva do ato de investidura.
Algo soa familiar.
Se você estiver por dentro de algumas notícias atuais, algumas situações dessa história soaram familiares.
A prática de aumentar ou diminuir o número de juízes tem nome: o fisiologismo, que é a criação, pelo governo derrotado nas urnas, de numerosos cargos no Judiciário, com a nomeação de correligionários; os casuísmos, leis criadas ad hoc, redução do número de ministros da Suprema Corte.
Também conhecemos bem a figura do autoritarismo, as ameaças de descumprimento da decisão e de impeachment de ministros da Suprema Corte.
Fato é que nada nesse mundo nasceu pronto e, assim como tudo, as instituições públicas e privadas estão sempre se aperfeiçoando. Esse caso não foi a última vez que vimos essas ameaças, mas desde sempre estivemos melhorando e as instituições evoluindo e tornando-se mais estáveis e seguras.
A decisão, embora imersa em suas polêmicas, é de extrema importância pois consolidou décadas de debate e serviu de marco para o constitucionalismo no mundo, sendo influente muito além da América.
Hoje, diversos países alteraram seus modelos para abarcar o controle difuso de constitucionalidade. Entre eles o Brasil, que desde cedo trazia em suas constituições o modelo estabelecido pelo caso.
Se você quiser saber um pouco mais sobre essa história, deixo abaixo a excelente bibliografia utilizada.
Bibliografia:
SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. 1552 p.
NEVES, José Roberto de Castro (org.). Os grandes julgamentos da história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 567 p.